Memórias do rock: O primeiro, o maior, o melhor
Em janeiro de 1985, fui convidado para trabalhar como comentarista da TV Globo do Rock in Rio, o primeiro mega-festival de rock do Brasil, que a juventude brasileira esperava desde 1969 - Woodstock - e que só o fim da censura e da ditadura permitiam. Os militares tinham pavor da idéia de juntar jovens - em qualquer coisa que fosse. E não é possivel existir rock de verdade com censura. Afinal, se tirarmos dele a atitude, a rebeldia, a poesia anárquica, a irreverência e sexualidade, sobram só os tais três acordes. Por isso, só 15 depois de Woodstock, o Brasil teve o seu. Produzido por Roberto Medina, ocupou uma imensa área em Jacarepaguá, com um palco monumental, som e luz ingleses e espaço para meio milhão de espectadores. Viriam estrelas como o Queen, Rod Stewart, o já decadente Yes, as new-wavers Go-Go's, a alemã Nina Hagen, misturando ópera e rock pesado, os mais lights James Taylor e George Benson, além de uma inesperada delegação de heavy metal, com o AC/DC, Skorpions, Iron Maiden, Whitesnake e o veterano Ozzie Osborne, comedor de morcegos e patriarca do metal. Eles se apresentariam junto com as maiores estrelas do pop brasileiro, como Rita Lee, a Blitz, Lulu Santos, Erasmo Carlos, Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Alceu Valença, Baby Consuelo, Eduardo Dusek, os novos Paralamas do Sucesso, Kid Abelha e Barão Vermelho, e até Ivan Lins, absolutamente estranho no ninho roqueiro, escalado para dividir a noite jazzística com George Benson. Na transmissão da noite de abertura, nervoso e ao vivo, tentei fazer graça na apresentação de Erasmo Carlos: "... e como dizia Jair de Taumaturgo, vamos tirar o tapete da sala porque hoje é dia de rock! Eraaaasmo Carlos!" Erasmo entrou em cena e o diretor Aloysio Legey me disse que Boni queria falar comigo no fone. Apesar do volume que vinha do palco, meu ouvido quase estourou quando ele gritou: "Jair de Taumaturgo é a puta que o pariu!!!" Entendi a mensagem e passei a fazer apresentações mais sóbrias, procurando aprofundar os comentários musicais. Realmente Jair e sua cabeça branca eram de um tempo em que a maioria do publico do Rock in Rio nem tinha nascido. Com 40 anos me senti velhíssimo, como um patético neo-jair animando a garotada enquanto o amanhã não chegava. Graças a Deus eu não apresentava o festival do palco, mas de uma pequena cabine no alto de uma torre, acima das cabines de som e luz, no meio da platéia, a pouco mais de 20 metros do palco. De lá assisti o festival de um dos melhores lugares possíveis: ficávamos só eu, um câmera e um assistente. De lá vi Erasmo Carlos ser vaiado por uma platéia de mais de 100 mil metaleiros furiosos, guerreiros de uma nova tribo urbana que ninguém esperava, nem conhecia, que ninguém sabia que existia e onde se escondia. Mas eles estavam ali, para gritar e cantar junto com o Iron Maiden e o Whitesnake, e para vaiar e jogar latas de cerveja e copos de areia em tudo que não fosse metal. E pesado. E em inglês. Nas noites seguintes, do alto de minha cabine a visão era maravilhosa: um mar humano de 200 mil pessoas, sentadas em paz ouvindo música, tomando cerveja e torrando unzinho, cantando em coro junto com Freddy Mercury e o Queen todas as letras de seus grandes sucessos, em inglês. Com Rod Stewart a mesma coisa, só que ainda melhor: um show de altíssimo nível sob chuva torrencial, que Rod, como escocês legítimo, tirou de letra, chutando bolas de futebol para a platéia e pensando se toda aquela galera estava mesmo cantando em inglês ou se ele tinha tomado um a mais. Ou cheirado uma a menos. Para os Paralamas do Sucesso o Rock in Rio foi o trampolim da vitória e lançou "Óculos" para o sucesso nacional, cantada em coro pela colossal platéia, ao vivo em rede nacional. Herbert Vianna saiu do festival como um novo herói da garotada e no final ainda ganhou a mocinha, Paula Toller, do Kid Abelha. "Por que voce não olha prá mim?
me diz o que é que eu tenho de mal,
por que voce não olha prá mim?
por trás dessas lentes tem um cara legal." Ovacionado pela multidão, Herbert dedica o show a Lobão, Ultraje a Rigor, Titãs e Magazine (ausentes do Rock in Rio) e a todos os grupos que tornaram possível o rock brasileiro. E começa a cantar "Inútil" como um inesperado bis. O público explode de alegria, duzentas mil vozes em fúria cantam os versos históricos. Totalmente rock and roll. Os Paralamas rapidamente vendem mais de 100 mil discos e fazem 120 shows em um ano de estrada. A banda é uma das grandes do Rock Brasil, mas, além de "Óculos", os seus novos grandes sucessos no disco e no show são as romanticas "Me Liga", "Mensagem de amor" e "Meu Erro". Além dos Paralamas, a Blitz, Lulu Santos, Barão Vermelho e Kid Abelha, fizeram bons espetáculos, profissionais, cheios de hits. A Erasmo foi dada uma segunda chance, quando se apresentou na mesma noite que James Taylor - uma das mais tranqüilas e aplaudidas do festival. Todo o rock brasileiro (ausente e presente) teve no Rock in Rio um divisor de águas, que marcou a sua entrada oficial no mercado musical de massa. O grande ausente foi Raul Seixas, cada vez mais recluso, mais magro e mais drogado, com a barba maior, que se recusou a participar de tal caretice. Mas a rainha estava lá, Rita Lee era uma das grandes atrações do Rock in Rio e esperava-se uma apresentação não menos que consagradora, tal a popularidade que desfrutava, tantos os hits que emplacava, um atrás do outro, com Roberto de Carvalho, desde "Lança Perfume": "Saúde", "Banho de espuma", "Chega mais", "Nem luxo nem lixo", "Luz del fuego", "Flagra", "Baila Comigo", "Alô alô, marciano" e muitas outras. Mas havia um problema e, Rita esperava, uma solução. Assim como Raul, ela estava vivendo uma vida totalmente rock and roll, na estrada com a banda, entre aeroportos e quartos de hotel, tocando para multidões e submergindo num mar de drogas, com a saúde bastante debilitada. Mas pouco antes do festival, Rita conheceu o paranormal Thomas Green Morton, que começava a fazer sucesso nos círculos esotéricos entortando metais com os olhos e transformando água em perfume. Rita estava fraca e apavorada, queria cancelar o show, não tinha força para nada. Mas Thomas prometeu que a energizaria antes da apresentação e tudo correria bem. Durante uma hora Thomas energizou Rita no camarim. Ela entrou no palco linda e carismática como sempre e cantou confiante os primeiros versos de "Nem luxo, nem lixo": "Como vai você?
assim como eu
uma pessoa comum
um filho de Deus
nessa canoa furada
remando contra a maré ..." Mas o que saiu da sua garganta foi um sopro, um fio de voz trêmulo, mas que ainda assim lhe custou grande esforço. Estava perdida: a energização não pegou, a mágica não funcionou, a banda tocava alto e forte, com grande ritmo, mas a voz não lhe saía da garganta. Foi quando, como se percebesse seu sofrimento, o povo começou a cantar com ela, por ela. E cantou do início ao fim todas as músicas, com força e alegria, enquanto Rita sofria para sussurar um mínimo e se comovia com a imensa prova de amor que o público carioca lhe dava. Foi uma das artistas mais aplaudidas do festival e saiu do palco desfalecendo, totalmente desenergizada. Mas se sentindo mais amada do que nunca.